Last modified: 2015-08-27
Abstract
INTRODUÇÃO
Este artigo apresentará os resultados atuais de uma pesquisa-ação em andamento sobre as possibilidades de inserção da fabricação digital em contextos não industriais. Dentre os resultados apresentados anteriormente neste congresso estava uma crítica à concentração de poder decisório presente nos modelos produtivos industriais e indicações de características destes modelos que foram herdadas pelas ferramentas de fabricação digital. A partir desta conjuntura foi exposto o modelo produtivo da autoconstrução em uma favela e uma maneira de adaptar uma ferramenta de fabricação digital para incorporá-la neste modelo. Como afirma Andrew Feenberg, cada tecnologia tem um contexto específico no qual funciona bem, portanto a tentativa de exportá-las prontas a outros contextos, quando bem sucedida, é desastrosa (FEENBERG, 2010). Já neste artigo, o foco da discussão será nos resultados obtidos ao se tentar criar uma estrutura organizacional para prover acesso a esta ferramenta dentro do contexto da autocostrução nesta favela específica. Como afirma David Harvey, a realização de novas concepções mentais de sociedade requer não somente novas tecnologias mas mudanças nas relações sociais, nos arranjos institucionais, no trabalho, entre outras esferas que configuram a totalidade sociológica de um meio de produção (HARVEY, 2011).
Nossa ideia inicial era buscar uma estrutura de gerenciamento entre os pontos de acesso à fabricação digital existentes, porém a falha inicial deste método nos levou a perceber que nenhuma destas estruturas se encaixaria perfeitamente em nosso contexto. Alguns Fablabs apresentavam muitas características interessantes, mas o requerimento mínimo de diversas máquinas que trabalham somente com materiais homogêneos específicos ignoraria a vasta quantidade de materiais de reuso disponíveis no contexto. As oficinas comunitárias americanas, por sua vez, foram as que apresentaram uma estrutura mais facilmente apropriável. O serviço de biblioteca de ferramentas nestas oficinas demonstrou como uma interface digital de gerenciamento poderia aumentar o alcance das ferramentas e o controle coletivo sobre elas. O problema, porém, é que todas estas propostas ainda tinham um escopo de atuaçao muito fechado e totalmente novo para os moradores, o que prejudicaria a apropriação da estrutura e à transformaria em um serviço.
Sendo assim, iniciamos a construção de uma estrutura organizacional condizente com o contexto em questão. A análise dos resultados, por sua vez, indica a necessidade do futuro desenvolvimento de uma interface digital que contribua para a apropriação e gestão coletiva destes meios de produção sem permitir a consolidação de hierarquias existentes.
METODOLOGIA
Não existia no momento inicial do experimento informação suficiente para que fosse totalmente planejado e aplicado sobre a comunidade. Faltavam informações sobre: onde as máquinas deveriam ficar; como seriam acessada pelos moradores; como eles poderiam adquirir conhecimento para usá-las; quais seriam seus interesses em utilizá-las; entre muitas outras coisas. Também não havia qualquer predisposição dos moradores para realizar tal empreendimento. Portanto, a solução adotada foi de se aproximar de um problema já existente no contexto, a reforma das casas precárias de alguns moradores, e trabalhar dentro do próprio sistema de produção existente na favela para solucionar este tipo de problema. Com a adoção de tal solução, o trabalho conjunto com moradores e outros atores envolvidos passou a conduzir o rumo dessa parte da pesquisa e o modelo inicial tornou-se apenas uma sugestão dentro do diálogo que se iniciou, possibilitando assim dar passos largos na busca por uma estrutura organizacional condizente com o contexto.
RESULTADOS
Para fins de análise a pesquisa-ação realizada pode ser dividida em cinco etapas: (i)aproximação; (ii)idealização, (iii)busca por recursos, (iv) estruturação legal e; (v) inauguração.
(i) A aproximação com o contexto se deu inicialmente por meio de moradores que já tinham relações estabelecidas com a universidade. Junto a este círculo de moradores pudemos nos envolver em alguns casos de autoconstrução, desta maneira conhecendo a maneira de trabalhar destes autoconstrutores, suas ferramentas e suas necessidades. Verificou-se neste processo que, apesar da maneira de trabalhar radicalmente diferente, o sistema construtivo utilizado era o mesmo da indústria e, apesar do conhecimento empírico que adquirem através da experimentação intensa com os materiais, os autoconstrutores tinham a qualidade de suas produções prejudicada pela falta de acesso ao conhecimento científico e aos equipamentos de que desfruta a indústria da construção.
(ii) A idealização de uma estrutura organizacional surgiu a partir de três necessidades levantadas durante a aproximação com a autoconstrução. Primeiramente constatamos a necessidade de um meio de acesso ao conhecimento científico por parte dos autoconstrutores, idealizamos então uma página no Facebook por onde se organizariam mutirões envolvendo estudantes de arquitetura e autoconstrutores locais em busca de troca de conhecimento. Esta estrutura foi viabilizada contando somente com responsáveis por criar os eventos, os quais se autogeriam. Muitas vezes, porém, faltavam ferramentas nos mutirões, apontando a necessidade de um estoque de ferramentas em grande quantidade. Em segundo lugar, portanto, idealizamos uma biblioteca de ferramentas estruturada por um aplicativo de gerenciamento online chamado Localtools. Esta estrutura contaria com um gestor, um meio de acesso ao aplicativo, um espaço para armazenamento, ferramentas e usuários contribuintes. E finalmente em terceiro lugar constatamos que a madeira de descarte era utilizada de maneira muito precária na autoconstrução devido à falta de ferramentas de marcenaria. Em razão do porte destas ferramentas, entre elas a fresadora cnc, idealizamos portanto que seria necessário também um espaço de trabalho que as acomodasse e alguém que oferecesse o conhecimento necessário para utilizá-las, seja no momento de emprestá-las, seja por meio de workshops.
(iii) A busca por recursos para viabilizar a estrutura idealizada se iniciou com a formalização de todas as necessidades em um projeto. Este projeto, ainda abstrato, foi divulgado e apoiado por uma construtora cujo trabalho estava impactando a vila onde trabalhávamos. Nos foi requerido, porém, um projeto mais específico, com os itens necessários e seus custos, e que formalizássemos uma associação para receber as doações. Este projeto foi elaborado e concomitantemente, utilizando o projeto anterior, conseguimos a concessão de um edifício público abandonado para viabilizá-lo.
(iv) A estruturação legal ocorreu ao longo de três meses de reuniões basicamente com o círculo inicial de moradores e auxiliares jurídicos. Foi então escolhido o modelo legal de associação, elaborado e registrado seu estatuto e, desta maneira, recebidas as doações de ferramentas e materiais para reforma e administração do espaço.
(v) A inauguração aconteceu por meio de uma festa aberta com atrações locais. Neste evento foram apresentadas aos moradores as regras da associação e da oficina e biblioteca de ferramentas comunitária. Após esta data começamos a realizar vagarosamente empréstimos de ferramentas utilizando o aplicativo Localtools enquanto terminamos de reformar a estrutura elétrica do espaço para ligar as máquinas de marcenaria e a fresadora cnc de baixo custo que produzimos.
ANÁLISE
Analisando as etapas da criação da estrutura, percebeu-se que o envolvimento de moradores e outros interessados na utilização da estrutura cresceu gradativamente mas ainda não chegou a atingir os menos empoderados. Desde o envolvimento inicial ao momento em que houve a concessão do espaço os únicos envolvidos eram organizadores de eventos culturais que já tinham um canal de comunicação com a universidade. Ao começar a trabalhar na reforma do espaço começaram a surgir outros interessados devido à visibilidade de sua localização. Desta vez foram organizadores autônomos de atividades como capoeira, aula de percussão, dança afro, bailes funk, entre outros que já trabalhavam há alguns anos na área mas não tinham um espaço de apoio. Ao registrarmos a associação ainda uma outra camada acessada foram aqueles que já tinham projetos estruturados mas precisavam de amparo legal para conseguir doações, participar de licitações e projetos de fomento. Nossa estrutura tornou-se portanto um guarda-chuva legal para as atividades propostas por diversos moradores. Por fim, somente com a inauguração e demonstração do panorama de funcionamento do espaço foi que surgiu o público de marceneiros, serralheiros, pedreiros, entre outros interessados na utilização das ferramentas.
Verificou-se que a gradativa apropriação da estrutura pelos moradores está reproduzindo a estrutura que já tinham entre sí: os organizadores culturais formaram a diretoria da associação, gerindo a interação entre seus diversos projetos; estes projetos são guiados pelos organizadores autônomos que já os realizavam antes; os mais desenvoltos da construção se interessaram em gerenciar a oficina e o empréstimo de ferramentas para poder abrí-la nos horários que mais lhes convém e; os mais fragilizados estão começando a aparecer como usuários dos serviços de empréstimo.
Apesar de ter como objetivo uma apropriação equitativa da estrutura entre os moradores, esta gradação participativa foi de certa maneira inevitável pois enquanto o contato com o público em geral, motivado pelas atrações da inauguração, levou a participação a um nível maior, estes não se interessariam em participar da iniciativa quando ela ainda era somente um modelo.
DISCUSSÂO
Imaginamos após estas etapas da pesquisa, apesar de ainda não ter realizado experimentos com a fabricação digital junto aos moradores, que esta e outras tecnologias serão mais facilmente apropriadas no contexto construído junto aos moradores do que se fossem realizados workshops de fabricação digital em uma estrutura alheia. Nosso desafio, porém, ainda é redesenhar esta estrutura organizacional e criar uma interface de gestão coletiva que garanta sua abertura, portanto não permitindo que congele sua estrutura social atual.
Keywords
References
FEENBERG, Andrew. Ten paradoxes of Technology. presented at the 2009 Biennial Meeting of the Society for Philosophy and Technology as a keynote address. Techné 14:1, Winter 2010.
HARVEY, David. O Enigma do Capital: e as crises do capitalismo. Tradução de João Alexandre Peschanski. São Paulo, SP: Boitempo, 2011.