Last modified: 2015-08-27
Abstract
1. Introdução
O campo disciplinar da Acústica Urbana, que compreende tanto o estudo do controle de ruídos quanto o das Paisagens Sonoras (Soundscapes[1]), busca entender a complexa relação dos sons com as cidades e como os aspectos sonoros podem ser representados, interpretados e incorporados nos processos projetuais. Embora a preocupação com o a poluição sonora tenha aumentado nos últimos anos, a questão acústica das cidades ainda é um tema pouco discutido na academia e negligenciado no processo de planejamento das cidades.
No caso brasileiro, a preocupação acústica normalmente surge a posteriori, através de medidas mitigatórias que consigam controlar níveis de ruídos excessivos. Isso se evidencia na própria legislação, cujo único instrumento regulatório é a norma NBR 10151- Avaliação do Ruído em Áreas Habitadas Visando o Conforto da Comunidade (ABNT/2000), que estabelece níveis máximos de ruídos em áreas já consolidadas. Enquanto nos países da Comunidade Europeia são exigidos mapas de ruído estratégicos em aglomerações com mais de 250.000 habitantes, no Brasil, estudos de impactos acústicos não são exigidos nem mesmo para implantação de rodovias de grande porte (CORTES, NIEMEYER 2013).
A falta de estudos mais aprofundados acerca da acústica das cidades se evidencia no próprio campo de representações e processos digitais. Mesmo com o desenvolvimento de mídias capazes de lidar com o processamento de comportamentos sonoros complexos, percebemos no campo do Design Computacional[2] e suas áreas investigativas uma priorização dos aspectos formais/visuais dos objetos arquitetônicos e urbanos, desconsiderando alguns fatores imaterias, entre eles, o som.
Nesse contexto, o presente artigo se propõe a refletir sobre a questão da Acústica Urbana e as possibilidades de representação, simulação e avaliação sonora mediadas pelas técnicas da Gráfica Digital. Entendemos que algumas questões acústicas, estudadas através de processos digitais como parametrização, sistemas generativos, gramática da forma, realidade virtual, computações evolucionárias, entre outros, podem ser compreendidas sob novas óticas, contribuindo para a incorporação da preocupação sonora no planejamento das cidades. Pretendemos apresentar nesse artigo alguns estudos iniciais, estratégias de trabalho e reflexões teóricas a partir de um protótipo digital, que possam abrir novos horizontes no estudo da relação do som com a cidade.
2. Procedimentos metodológicos:
Os procedimentos metodológicos da pesquisa se dividem em análise comparativa e aplicação explorativa num estudo de caso. Num primeiro momento, parece ser importante a análise de alguns softwares que lidam com a questão sonora da cidade, especialmente os de mapeamento de ruídos[3]. Essas ferramentas, que realizam tanto análises de ruídos de morfologias urbanas consolidadas quanto simulações futuras, têm sido bastante utilizadas para quantificar e rastrear os ruídos urbanos, contribuindo para o planejamento de cidades, principalmente nos casos europeus.
A aplicação desses softwares - cujo output são imagens com gradientes de cores indicando áreas com maiores níveis de pressão sonora - constitue um grande avanço na identificação da relação da forma das cidades com as áreas mais afetadas pela poluição sonora. Por outro lado, os mapas de ruído tendem a uniformizar a percepção do som, como se todos os sons acima de determinados níveis fossem indesejáveis.
Enquanto o estudo da poluição sonora busca formas de mapear e controlar ruídos, o campo investigativo das Paisagens Urbanas propõe um outro tipo de abordagem, na qual os sons podem ser interpretados de forma qualitativa. Para Rêgo (2008): "Os sons e os demais elementos "imateriais", como a luz e o calor, juntam-se aos elementos materiais, formas e texturas, para qualificar os ambientes(...)Isto só é possível porque, entre o "silêncio" e o "ruído", existe uma infinita variedade de sons e de escutas.""
Esse enfoque, que busca evidenciar a importância cultural dos sons urbanos e naturais, tem sua gênese na obra de Murray Schafer, intitulada “The soundscape: our sonic environment and the tuning of the world”. O termo soundscape (traduzido para paisagem sonora) cunhado pelo autor, se refere à contribuição dos sons para a construção do conceito de paisagem, que vai muito além da questão visual.
Na obra em questão, o autor cria um sistema de leitura da paisagem através da categorização de tipos sonoros. Assim, conceitos como marco sonoro e ambiente sonoro (uma espécie de relação figura-fundo do som), além de outros recursos, são utilizados na tentativa de diferenciar sons de ruídos, dependendo do contexto. Sua obra é considerada uma grande contribuição para o estudo dos sons, tanto pelo caráter historiográfico quanto pela idealização de um sistema qualitativo de interpretação sonora.
A partir dessas questões, a estruturação de um protótipo de simulação - que constitui uma segunda etapa da pesquisa - busca integrar duas abordagens (quantitativa x qualitativa) que parecem ser conflituosas no entendimento dos sons da cidade. É importante frisar que entendemos por protótipo um sistema aberto, capaz de testar possibilidades e gerar não apenas respostas às perguntas, mas também novas reflexões.
O local de aplicação do modelo de simulação é um recorte urbano na região de Guaratiba, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, que guarda questões ambientais relevantes e marcos sonoros ameaçados pela rápida expansão urbana. A área em questão passou por profundas mudanças após a construção do túnel da Grota Funda e da implantação do BRT Transoeste. Hoje a região desperta interesses de investidores e as discussões em torno do PEU de Guaratiba tem provocado intensos conflitos do Estado com a sociedade civil.
Através do estudo de caso, índices quantitativos, baseados em mapas de ruídos, e índices qualitativos, baseados em dados de pesquisa de campo e estruturados a partir da obra de Schaffer podem ser cruzados com o auxílio de processos digitais paramétricos, simulando uma morfologia em função de seu desempenho acústico. Outra possibilidade interessante de "quantificação" de índiceis qualitativos do som seria através de mapas colaborativos, produzidos em plataformas online.[4]
3.Resultados
Esperamos com essa pesquisa contribuir com novas abordagens referentes à questão sonora das cidades, nos apropriando de metodologias derivadas do campo do Design Computacional. Pretendemos evidenciar as interações da morfologia urbana com a acústica da cidade, assim como lidar com as questões de percepção acústica e identidades sonoras, com o auxílio de processos digitais. Ao evidenciarmos essas relações, esperamos que o estudo contribua como novos métodos que facilitem e estimulem a integração do projeto acústico ao planejanento das cidades.
4. Discussão
O artigo aborda questões envolvendo sistemas paramétricos orientados a partir do som. Tais questões envolvem metodologias tanto do campo computacional, como a estruturação de sistemas generativos, quanto da Acústica Urbana, como a análise de ruídos e sua relação com a morfologia urbana. Entretanto, além de explorar os aspectos técnicos, muitas reflexões teóricas podem ser levantadas a partir dos estudos dos sons através do processamento digital.
Uma primeira questão que emerge diz respeito ao conceito de projeto orientado pela performance (performance oriented design), que parece surgir como um instrumento interessante para articular os sistemas sonoros com a morfologia urbana, no processo de simulação e avaliação. Essa estratégia de trabalho busca diretrizes performáticas no processo de concepção, articulando o projeto, sua forma, organização espacial e material ao melhor desempenho ambiental.
Para Oxman (2008), no processo de design computacional baseado na ideia de performance "...a ênfase se desloca de fazer uma forma para encontrar uma forma (form-finding) baseada em técnicas generativas". Nesse quadro, um novo tipo de "designer" é idealizado, que passa de um indivíduo “controlador de formas” para um agente “controlador de processos ou regras” O foco do projeto passa a não ser mais a forma final do objeto projetado, e sim, o conjunto de variáveis envolvidos na concepção projetual.
No campo da Acústica, o conceito de performance muitas vezes se reduz unicamente à noções de desempenho ou eficiência. Um edifício, por exemplo, pode "performar" melhor que outro ao reduzir os ruídos provenientes do exterior, ou minimizar os sons entre os ambientes internos. Uma determinada quadra em uma cidade específica, da mesma forma, pode ter sua performance mensurada se a morfologia urbana contribuir para que os ruídos sejam atenuados em determinadas áreas de uso residencial. Nessas situações, a performance pode ser medida por índices, parâmetros e projeções.
Por outro lado, uma abordagem da acústica que incorpore noções qualitativas exige uma leitura de performance por outro viés. Seria difícil, por exemplo, mensurar a performance de um som cuja apreciação varie em diferentes culturas. Nesse sentido, a obra de Schaffer traz alguns exemplos interessantes em relação ao "gosto" sonoro, o que sugere que devemos nos apropriar do conceito de performance com uma certa cautela, mas não impede que possamos elaborar índices de "performance acústica" mais subjetivos.
Esse cruzamento de índices urbanos (no caso, índices sonoros) com as noções de identidade, percepção e subjetivação (dos sons) ainda constitui um grande desafio a ser explorados no campo da Gráfica Digital. Nesse sentido, esperamos, com essa pesquisa, que a observação metodológica no caso acústico possa abrir novos horizontes tanto para os estudos dos sons urbanos quanto para o próprio campo do Design Computacional.
[1] termo apropriado da obra de Muray Schafer
[2] termo apropriado da obra de Flemming e Mitchell, "A lógica da Arquitetura" traduzida por CELANI (2008)
[3] exemplos: SoundPlan, CadnA, Predictor
[4] ver exemplos:
http://www.opensoundneworleans.com/core/category/ambient
www.lisbonsoundmap.org/
http://www.montrealsoundmap.com/
http://www.nysoundmap.org/
Keywords
References
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