Last modified: 2015-08-27
Abstract
Parte de uma pesquisa mais ampla, o artigo aqui proposto se insere no tema das potencialidades cognitivas e retóricas específicas que uma mídia “analógica” e ancestral como o livro impresso pode ter na visualização de informações e nas abordagens de projeto de arquitetura mais típicas do contexto digital recente.
Na esteira da crescente predominância das hipermídias cibernéticas e das possibilidades técnicas proporcionadas pela editoração digital, nas últimas décadas o livro impresso tem sido diversas vezes explorado e enfatizado em suas peculiaridades de interface — como sua sequencialidade, sua tatilidade ou sua qualidade de, como ressaltou Paul Levinson, emprestar concretude documental física a uma informação que, nas telas dos computadores, é mero efeito luminoso fluido e intangível. Essas possibilidades também têm sido ocasionalmente exploradas de maneira a proporcionar formas outras de narrar, representar e visualizar informações (sejam pictóricas, relacionais ou quantitativas e estatísticas), engendrando uma performance de linguagem e design e tanto comunica quanto vincula os dados a uma retórica.
Relacionado a esse contexto, a partir dos anos noventa é possível observar uma transformação no perfil do livro como mídia de difusão do trabalho das profissões voltadas ao ato projetual (como a arquitetura, o design gráfico, o design de produtos, etc.). No campo da arquitetura e do urbanismo, em particular, escritórios como os holandeses OMA (Office for Metropolitan Architecture), MVRDV e UNStudio, entre outros, se envolveram na produção de extensos livros “infográficos” em que dados são narrados e apresentados de maneira marcadamente performativizada, produzindo efeitos estéticos e retóricos. Estão incluídos entre estes certos livros de pesquisa e especulação como Mutations (2001), Project on the City I: Great Leap Forward (2002), Metacity/Datatown (1999) ou Five Minutes City: Architecture and (im)mobility (2003); mas tonaram-se ainda mais conhecidas as monografias de apresentação de obras como S,M,L,XL (de Rem Koolhaas e OMA, 1994), FARMAX (de MVRDV, 1998) e Move (de UNStudio, 1999) e, parte de uma geração de livros a empreender uma exploração distintiva dos recursos e potenciais expressivos do design gráfico (e diversas vezes compostos e pensados em parceria com designers), principalmente nas apresentações de projetos.
Mas do que ter um perfil gráfico diferenciado, contudo, esses livros também fizeram parte de uma nova “tradição” de publicações que, desde então, tem tratado a arquitetos não apenas como projetistas de formas e espaços mas coletores e manipuladores de informação, preocupados em explorar as possibilidades de interpretação e processamento de dados puros para diversos fins, como a leitura de situações de intervenção, a combinação/sobreposição de funções programáticas e a geração de formas arquitetônicas.
O escritório MVRDV, em particular, tem sido caracterizado desde meados dos anos noventa por uma estratégia projetual que enfatiza a análise e manejo de dados quantitativos, compreendendo a realidade na qual o projeto intervém como um “panorama de dados” (datascape). O grupo é conhecido pelo seu uso constante de diagramas como ferramenta projetual, sua abordagem combinatória e o emprego de programas computadorizados como Castle Maker e Function Mixer como ferramentas de elaboração de projetos. Essa abordagem, por sua vez, tem sido evidenciada e incorporada sobretudo nos livros publicados pelo grupo, como os já citados FARMAX e Metacity/Datatown.
Considerando o contexto de emprego expressivo e performativo da mídia livro, o artigo proposto aqui se dedica a demonstrar, analisar e discutir como certos aspectos-chave da abordagem de MVRDV foram ativamente incorporados na linguagem gráfica de sua monografia FARMAX – Excursions in Density (projetada pelos designers gráficos Roelof Mulder e Annemarie van Pruyssen), ocasionando uma homologia — ou seja, correspondência estrutural — entre o objeto livro e a atitude projetual arquitetônica nele descrita.
Procedimentos
O estudo procede como uma análise comparativa, identificando algumas das principais características da abordagem projetual de MVRDV presentes no conteúdo textual de FARMAX e as traçando um paralelo com as características narrativas, sintáticas e iconográficas do mesmo livro.
Seu embasamento se inicia apresentando os conceitos com os quais se pretende trabalhar no texto, em especial a noção de performatividade no design gráfico, que aqui adveio do filósofo John L. Austin e sua apropriação na discussão sobre arquitetura por autores como o crítico Robert Somol. Em seguida, contribuiu o para o estudo bibliográfico de textos sobre MVRDV e de lavra dos próprios membros do grupo (especialmente Winy Maas), de maneira a sintetizar as caraterísticas gerais de seus projetos e, especialmente, seu emprego de recursos digitais no processamento de informações.
O procedimento seguinte foi a análise do estudo de caso em si — o objeto-livro FARMAX — através de leituras sucessivas: primeiro, a identificação e análise do discurso projetual de MVRDV presente nele (dado facilitado pelo estudo prévio das características do grupo); em seguida, análise cuidadosa das características básicas de design do livro — estruturação temática e de “navegação”, diagramação, tipografia, iconografia e sequenciamento de informações — de maneira a identificar as recorrências, padrões e contrapontos visuais construídos no livro, sempre enfatizando o conteúdo referente a diagramas generativos e/ou gerado por processamento de dados em meios digitais; e, por fim, a verificação de quais os temas e pontos em que nota-se correspondência ou homologia entre a abordagem informacional preconizada por MVRDV para a arquitetura e as características de FARMAX enquanto suporte gráfico de informação.
Resultados
Em linhas gerais, constatou-se que o design de FARMAX de fato performatiza aspectos do discurso arquitetônico de MVRDV. Em primeiro lugar, o livro perceptivelmente se utiliza de recursos sintáticos variados, sobretudo a exploração cinemática do encadeamento das páginas, para ressaltar ou mesmo dramatizar os o conteúdo infográfico, os diagramas e mesmo os processos de processamento digital de dados que ele descreve. A homologia propriamente dita entre discurso projetual e linguagem gráfica, contudo, se faz presente na peculiar na seleção iconográfica do livro: em sua estratégia de incluir e “acumular” informação quantitativa expressa graficamente (número, tabelas, gráficos e diagramas) e em sua forma de organizar a informação pictórica (fotográfica ou gerada por computador) em mosaicos que formam densos panoramas de multiplicidade.
Esses pontos de ênfase ou homologia, por sua vez, foram identificados como se dando ao redor de quatro grandes temas básicos trabalhados pelos arquitetos no livro: primeiro, a densificação de informação como princípio prático e estético de trabalho — e, nesse caso, massa construída e a população humana são também considerados como “informação”; em segundo, a centralidade da atividade de pesquisa e da quantificação de dados para a compreensão da pluralidade da realidade em que se intervém; terceiro, o processo de geração da forma a partir da informação abstrata, o datascaping; e quarto, o recurso à catalogação, permutação e “empilhamento” (stacking) de elementos múltiplos e diferenciados segundo matrizes.
Discussão
A análise empreendida no artigo contribui para o estudo das abordagens profissionais e projetuais emergidas na “era da informação” na disciplina da arquitetura desde a década de noventa. Ela fornece também um caso e uma perspectiva para o debate sobre os potenciais de design de uma experiência da informação no livro impresso; e, especialmente, para a reflexão sobre a curiosamente imorredoura relevância dessa mídia como suporte para a visualização de informações de projeto, mesmo em um contexto crescentemente dominado pelo paradigma das hipermídias digitais.
A partir do exemplo estudado, pode-se entrever que a permanência e resiliência do livro não se devem à mera inércia cultural advinda de sua posição histórica privilegiada em nossa civilização, mas também às potencialidades intrínsecas a essa mídia. O livro tem continuadamente sido reinventado e reafirmado em sua relevância para o pensamento projetual que busque lidar com o processamento e visualização de informações; o caso estudado indica, por sua vez, que isso se dá menos pela contraposição ao mundo digital do que, justamente, pela incorporação de potencialidades trazidas pela gráfica digital e a iconografia “infográfica” dos anos recentes.
Compreende-se que a discussão desse tema é relevante não só a arquitetos, mas aos designers em geral — sejam aqueles interessados em se valer do livro impresso como meio de divulgação de seus trabalhos, seja para aqueles interessados em projetar livros de design e arquitetura, seja para os meramente interessados na relação entre o manejo e interpretação de informações e a atividade de projeto.
Referências
AUSTIN, J. L. Quando Dizer é Fazer – Palavras e Ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
BOLTER, J. D. Writing Space: Computers, Hypertext, and the Remediation of Print. Londres: Lawrence Erlbaum Associates, 2001.
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LEVINSON, P. Digital McLuhan: a guide to the information millennium. London and New York: Routledge, 1999.
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SOMOL, R. E. Green dots 101. Hunch: the Berlage Institute report, nº11, Winter 2006/2007, pp.28-37.
TOORN, R. van. Acabaram-se os sonhos? A paixão pela realidade na nova arquitetura holandesa... e suas limitações. In SYKES, K. (org.). O campo ampliado da arquitetura: antologia teórica 1993-2009. São Paulo: Cosac Naify, 2013, pp. 221-241.
Keywords
References
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